10 – Uivos
Eu não deveria ter escrito sobre lobos. Acho
que acabei os chamando de certa maneira, pois fiquei um o dia inteiro me
escondendo de uma alcateia. Nos filmes não parecia ser tão assustador assim. Eu
viu eles
Eu os avistei quando estava a caminho da biblioteca
para pegar mais um livro. Acho que tinha uns seis ou sete deles. Pelo jeito que
cheiravam o ar, pareciam perceber que eu estava por perto, então tratei logo de
sair dali. Não sei se deixei algum tipo de rastro para trás, porque pra onde eu
ia, eles me alcançavam em menos de cinco minutos depois. Corri para detrás de
um balcão de uma loja de conveniência e fiquei deitado em meio à poeira achando
que estaria protegido. Talvez tenha sido o maior erro que cometi em toda a
minha vida. Nunca me senti tão vulnerável e estúpido ao mesmo tempo. Os lobos
logo estavam passando pela rua em frente à loja, com orelhas atentas e focinhos
cheirando o asfalto, eles sabiam que tinha comida por perto.
Um deles entrou na loja. Escutei passos
cautelosos pisando nos fragmentos de vidro da janela que estava quebrada, o
ruído que ele fazia quando cheirava parecia estranhamente alto. Segurei a
respiração e logo os passos cessaram. Gotículas de suor desciam frio de todos
os meus poros e tremi ao ouvir um leve rosnado... Mas foi só isso. Como se os
outros membros de sua família tivessem o chamado, ele logo se virou e saiu de
lá, provavelmente decepcionado por ter deixado sua presa escapar bem debaixo do
seu focinho.
Não estava com pressa, então continuei
deitado por o que pareceu ser mais de duas horas seguidas. O dia escuro começou
a ser substituído por uma noite escura assim que a fraca esfera amarela se
despedia. Era como uma velha bateria que precisava descansar o máximo possível
para poder brilhar tudo o que podia algumas horas depois.
Voltei para o hotel com passos apressados,
com a sensação de que uma das criaturas pudesse pular no meu pescoço a qualquer
momento, mais possivelmente aquele mesmo lobo que não pensara em checar atrás
do balcão. Ele poderia ter esperado o tempo todo até eu sair do meu esconderijo
e me capturar, assim levando minha carne para o macho alfa, num gesto
triunfante de provar seu valor.
Se isso tivesse mesmo acontecido, não
estaria aqui escrevendo neste caderno de capa de couro surrada preciso de um
caderno novo. Torci para que a alcateia apenas estivesse realizando uma
busca e logo partissem para outra cidade, mas minhas preces não foram
atendidas. Quando a lua estava alta no céu, pude ouvir uivos. Foi a coisa mais
arrepiante que ouvi em toda minha vida. Talvez aquilo fosse um aviso para eu
empacotar minhas coisas e ir embora porque aquela cidade já não era mais
segura.
11 –
Lembranças
Como a comida que encontrei está acabando e
uma apreensão crescente começou a tomar conta de mim desde o incidente com os
lobos, decidi fazer uma busca geral na cidade, pelo menos nas redondezas do
hotel para ver se achava alguma coisa.
Achei mais um pouco de comida depois de
várias horas visitando várias casas, mas em uma dessas, algo me chamou mais atenção.
A casa ficava em uma rua atrás do hotel. Não
possuía muitos detalhes marcantes nem nada que a fizesse parecer especial, mas
ela tinha um charme, algo convidativo que não sei explicar. Então, decidi que
ela seria a próxima a ser revistada.
Ela tinha dois andares. Decidi revistar o
primeiro piso antes. A residência estava um pouco corroída pelo tempo, como
todos os outros lugares desta maldita cidade.
Adentrando na sala de estar, encontrei um
porta-retrato. Nele, estava a foto de uma típica família feliz, ou
aparentemente feliz. Uma mulher, um homem, uma menina que devia ter no máximo
uns quinze anos e um cachorro. No momento, congelei. Será que era aquele
cachorro que eu encontrara morrendo na estrada no caminho para cá? Não, não
podia ser. Ele era da mesma cor, mas... Olhei mais atentamente para a foto para
ter certeza. Sem dúvida o qual eu encarava nesse momento era mais novo. Depois,
pensando melhor, isso apenas aumentava a possibilidade de ser mesmo aquele cão.
Mas como será que um cachorro poderia sobreviver tanto tempo sozinho em uma
cidade abandonada? Anos sem ninguém para alimentá-lo? Ou talvez só houvesse
passado meses desde que tudo havia ido para a merda e eu, sem completa noção de
tempo, não soubesse. Mas a verdade é que eu não quero saber. Todo o dia parece
uma eternidade neste inferno e toda a vez que paro pra pensar sobre o tempo eu
fico com dor de cabeça.
Estou cansado demais agora, amanhã vou
escrever o resto. Acabei de ouvir um uivo e aquela sensação de preocupação me
invadiu novamente, eles ainda não foram embora, devem estar me caçando.
12 – Lembranças: 2
Acordei pensando no cão novamente. Ocorreu
pela minha cabeça o fato de que eu não sabia quantos anos tinha aquela foto no
porta-retrato. Talvez o cachorro já fosse grande quando tudo foi para a
merda... Chega! Não vou mais pensar sobre ele, ainda mais porque aquela foto
não foi a única coisa interessante que encontrei lá. Depois de não encontrar
nada no piso, subi as escadas.
Como muitas outras casas, o segundo andar consistia
em um longo corredor com portas tanto no lado esquerdo quanto no direito. Seis
no total. Comecei pelo o lado esquerdo: Um cômodo completamente vazio (talvez
um quarto de sobra para guardar aquelas coisas que não queremos que ninguém
veja então as pilhamos em um canto), um banheiro e na última porta um
escritório. Lá tinha apenas um computador quebrado, um guarda-roupa
completamente vazio e um bloco de notas guardado dentro de uma gaveta.
Eu esperava ver algo interessante escrito,
mas me decepcionei. Apenas anotações complicadas que eu não entendi. Mas no
final tinha um desenho. Parecia ter sido desenhada por uma criança pequena. Era
uma menina com um rabo de cavalo e um cachorro ou algo que parecia um ao lado
dela. “EU E O PULGA” estava escrito logo em baixo. Aquilo era demais pra mim.
Demais. Só que eu sabia que não podia ir embora ainda, pois ainda tinha mais
alguns cômodos para serem revistados.
No lado direito, havia dois quartos e mais
um cômodo. Em um dos quartos havia uma cama de casal e o outro era todo
colorido com uma cama de solteiro. Não encontrei nada no de casal.
Antes de checar o que parecia ser o quarto
da menina, fui ver o último cômodo. Queria evitar aquele quarto mesmo sabendo
que não poderia simplesmente deixá-lo sem ser checado. O último cômodo do lado
direito também estava vazio, pelo visto, eles tiveram bastante tempo de juntar
as coisas antes de fugir de lá.
Agora só faltava o quarto da menina que eu
sabia que não poderia mais evitar. Adentri Adentrei aquele cômodo todo
enfeitado e colorido, mas, ao mesmo tempo, tão cinza pela falta de claridade do
sol, todo seco e desbotado. Senti um aperto no coração pela terceira vez aquele
dia. Era a imagem mais triste que eu vira. Eu nunca havia entrado naquele
quarto antes, mas aquela visão me era muito familiar.
O quarto parecia ter saído de um filme de
terror. Os papeis de parede alegres se descolavam cada vez mais, havia papéis
amassados espalhados pelo chão coberto de um carpete rosa e poeira era o que
não faltava. Não pude deixar de pensar que o quarto talvez fosse um pouco
infantil demais para uma menina que aparentava ter pelo menos uns catorze anos,
mas eu não era ninguém para julgar, afinal, depois que tudo acaba, as
distinções entre pessoas também chegam ao fim. Não existe mais rico, pobre,
negro, amarelo... Só existem sobreviventes.
Em cima da cama, havia alguns animais de
pelúcia em uma fileira. Crianças são todas iguais.
Sem saber exatamente porque, agarrei um dos
animais (um elefantinho) e guardei-o na minha mochila. Revirei o que restava do
quarto rapidamente, mas também não possuía nada útil.
Não aguentei mais ficar lá, logo voltei para
o hotel. Permanecer naquela cidade por mais tempo poderia não ser bom para mim.
13 – Despedida
Vou embora hoje. Já não ouço mais os lobos,
mas mesmo assim não quero arriscar. Já havia juntado tudo o que pude encontrar
e seria um desperdício não continuar minha caminhada. O que traria de bom
continuar aqui? Eu apenas comeria toda a comida que encontrara com tanto
esforço e depois o que? Após pensar um pouco mais a respeito decidi que ir
embora era sim a decisão correta.
Tomei outro banho, troquei minhas roupas
novamente e estava pronto para ir.
Foi com uma sensação de vazio e decepção que
me despedi da cidade. Iria sentir muita falta de banhos e uma cama quente. Quem
sabe qual será a próxima vez que vou ter a oportunidade de usufruir desses
luxos? Eu sei que é um problema minúsculo comparado com a nossa situação atual,
mas é assim que eu me sinto neste momento.
Suspirei, dei uma última boa olhada naqueles
prédios arruinados e comecei a andar pela longa estrada rachada.
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