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30 de mai. de 2014

As Notas do Sobrevivente - III

10 – Uivos

   Eu não deveria ter escrito sobre lobos. Acho que acabei os chamando de certa maneira, pois fiquei um o dia inteiro me escondendo de uma alcateia. Nos filmes não parecia ser tão assustador assim. Eu viu eles
   Eu os avistei quando estava a caminho da biblioteca para pegar mais um livro. Acho que tinha uns seis ou sete deles. Pelo jeito que cheiravam o ar, pareciam perceber que eu estava por perto, então tratei logo de sair dali. Não sei se deixei algum tipo de rastro para trás, porque pra onde eu ia, eles me alcançavam em menos de cinco minutos depois. Corri para detrás de um balcão de uma loja de conveniência e fiquei deitado em meio à poeira achando que estaria protegido. Talvez tenha sido o maior erro que cometi em toda a minha vida. Nunca me senti tão vulnerável e estúpido ao mesmo tempo. Os lobos logo estavam passando pela rua em frente à loja, com orelhas atentas e focinhos cheirando o asfalto, eles sabiam que tinha comida por perto.
   Um deles entrou na loja. Escutei passos cautelosos pisando nos fragmentos de vidro da janela que estava quebrada, o ruído que ele fazia quando cheirava parecia estranhamente alto. Segurei a respiração e logo os passos cessaram. Gotículas de suor desciam frio de todos os meus poros e tremi ao ouvir um leve rosnado... Mas foi só isso. Como se os outros membros de sua família tivessem o chamado, ele logo se virou e saiu de lá, provavelmente decepcionado por ter deixado sua presa escapar bem debaixo do seu focinho.
   Não estava com pressa, então continuei deitado por o que pareceu ser mais de duas horas seguidas. O dia escuro começou a ser substituído por uma noite escura assim que a fraca esfera amarela se despedia. Era como uma velha bateria que precisava descansar o máximo possível para poder brilhar tudo o que podia algumas horas depois.
   Voltei para o hotel com passos apressados, com a sensação de que uma das criaturas pudesse pular no meu pescoço a qualquer momento, mais possivelmente aquele mesmo lobo que não pensara em checar atrás do balcão. Ele poderia ter esperado o tempo todo até eu sair do meu esconderijo e me capturar, assim levando minha carne para o macho alfa, num gesto triunfante de provar seu valor.
   Se isso tivesse mesmo acontecido, não estaria aqui escrevendo neste caderno de capa de couro surrada preciso de um caderno novo. Torci para que a alcateia apenas estivesse realizando uma busca e logo partissem para outra cidade, mas minhas preces não foram atendidas. Quando a lua estava alta no céu, pude ouvir uivos. Foi a coisa mais arrepiante que ouvi em toda minha vida. Talvez aquilo fosse um aviso para eu empacotar minhas coisas e ir embora porque aquela cidade já não era mais segura.

 11 – Lembranças

   Como a comida que encontrei está acabando e uma apreensão crescente começou a tomar conta de mim desde o incidente com os lobos, decidi fazer uma busca geral na cidade, pelo menos nas redondezas do hotel para ver se achava alguma coisa.
   Achei mais um pouco de comida depois de várias horas visitando várias casas, mas em uma dessas, algo me chamou mais atenção.
   A casa ficava em uma rua atrás do hotel. Não possuía muitos detalhes marcantes nem nada que a fizesse parecer especial, mas ela tinha um charme, algo convidativo que não sei explicar. Então, decidi que ela seria a próxima a ser revistada.
   Ela tinha dois andares. Decidi revistar o primeiro piso antes. A residência estava um pouco corroída pelo tempo, como todos os outros lugares desta maldita cidade.
   Adentrando na sala de estar, encontrei um porta-retrato. Nele, estava a foto de uma típica família feliz, ou aparentemente feliz. Uma mulher, um homem, uma menina que devia ter no máximo uns quinze anos e um cachorro. No momento, congelei. Será que era aquele cachorro que eu encontrara morrendo na estrada no caminho para cá? Não, não podia ser. Ele era da mesma cor, mas... Olhei mais atentamente para a foto para ter certeza. Sem dúvida o qual eu encarava nesse momento era mais novo. Depois, pensando melhor, isso apenas aumentava a possibilidade de ser mesmo aquele cão. Mas como será que um cachorro poderia sobreviver tanto tempo sozinho em uma cidade abandonada? Anos sem ninguém para alimentá-lo? Ou talvez só houvesse passado meses desde que tudo havia ido para a merda e eu, sem completa noção de tempo, não soubesse. Mas a verdade é que eu não quero saber. Todo o dia parece uma eternidade neste inferno e toda a vez que paro pra pensar sobre o tempo eu fico com dor de cabeça.
   Estou cansado demais agora, amanhã vou escrever o resto. Acabei de ouvir um uivo e aquela sensação de preocupação me invadiu novamente, eles ainda não foram embora, devem estar me caçando.

12 – Lembranças: 2

   Acordei pensando no cão novamente. Ocorreu pela minha cabeça o fato de que eu não sabia quantos anos tinha aquela foto no porta-retrato. Talvez o cachorro já fosse grande quando tudo foi para a merda... Chega! Não vou mais pensar sobre ele, ainda mais porque aquela foto não foi a única coisa interessante que encontrei lá. Depois de não encontrar nada no piso, subi as escadas.
   Como muitas outras casas, o segundo andar consistia em um longo corredor com portas tanto no lado esquerdo quanto no direito. Seis no total. Comecei pelo o lado esquerdo: Um cômodo completamente vazio (talvez um quarto de sobra para guardar aquelas coisas que não queremos que ninguém veja então as pilhamos em um canto), um banheiro e na última porta um escritório. Lá tinha apenas um computador quebrado, um guarda-roupa completamente vazio e um bloco de notas guardado dentro de uma gaveta.
   Eu esperava ver algo interessante escrito, mas me decepcionei. Apenas anotações complicadas que eu não entendi. Mas no final tinha um desenho. Parecia ter sido desenhada por uma criança pequena. Era uma menina com um rabo de cavalo e um cachorro ou algo que parecia um ao lado dela. “EU E O PULGA” estava escrito logo em baixo. Aquilo era demais pra mim. Demais. Só que eu sabia que não podia ir embora ainda, pois ainda tinha mais alguns cômodos para serem revistados.
   No lado direito, havia dois quartos e mais um cômodo. Em um dos quartos havia uma cama de casal e o outro era todo colorido com uma cama de solteiro. Não encontrei nada no de casal.
   Antes de checar o que parecia ser o quarto da menina, fui ver o último cômodo. Queria evitar aquele quarto mesmo sabendo que não poderia simplesmente deixá-lo sem ser checado. O último cômodo do lado direito também estava vazio, pelo visto, eles tiveram bastante tempo de juntar as coisas antes de fugir de lá.
   Agora só faltava o quarto da menina que eu sabia que não poderia mais evitar. Adentri Adentrei aquele cômodo todo enfeitado e colorido, mas, ao mesmo tempo, tão cinza pela falta de claridade do sol, todo seco e desbotado. Senti um aperto no coração pela terceira vez aquele dia. Era a imagem mais triste que eu vira. Eu nunca havia entrado naquele quarto antes, mas aquela visão me era muito familiar. 
   O quarto parecia ter saído de um filme de terror. Os papeis de parede alegres se descolavam cada vez mais, havia papéis amassados espalhados pelo chão coberto de um carpete rosa e poeira era o que não faltava. Não pude deixar de pensar que o quarto talvez fosse um pouco infantil demais para uma menina que aparentava ter pelo menos uns catorze anos, mas eu não era ninguém para julgar, afinal, depois que tudo acaba, as distinções entre pessoas também chegam ao fim. Não existe mais rico, pobre, negro, amarelo... Só existem sobreviventes.
   Em cima da cama, havia alguns animais de pelúcia em uma fileira. Crianças são todas iguais.
   Sem saber exatamente porque, agarrei um dos animais (um elefantinho) e guardei-o na minha mochila. Revirei o que restava do quarto rapidamente, mas também não possuía nada útil.
   Não aguentei mais ficar lá, logo voltei para o hotel. Permanecer naquela cidade por mais tempo poderia não ser bom para mim.

13 – Despedida

   Vou embora hoje. Já não ouço mais os lobos, mas mesmo assim não quero arriscar. Já havia juntado tudo o que pude encontrar e seria um desperdício não continuar minha caminhada. O que traria de bom continuar aqui? Eu apenas comeria toda a comida que encontrara com tanto esforço e depois o que? Após pensar um pouco mais a respeito decidi que ir embora era sim a decisão correta.
   Tomei outro banho, troquei minhas roupas novamente e estava pronto para ir.
   Foi com uma sensação de vazio e decepção que me despedi da cidade. Iria sentir muita falta de banhos e uma cama quente. Quem sabe qual será a próxima vez que vou ter a oportunidade de usufruir desses luxos? Eu sei que é um problema minúsculo comparado com a nossa situação atual, mas é assim que eu me sinto neste momento.  

   Suspirei, dei uma última boa olhada naqueles prédios arruinados e comecei a andar pela longa estrada rachada. 


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