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13 de abr. de 2014

As Notas do Sobrevivente - II

5 – Infância

   Ficarei no hotel aqui mesmo
   Foi no hotel mesmo que eu decidi ficar. A última vez que eu dormi em um hotel foi na minha lua de mel com a minha esposa. Eu separei dela alguns meses depois. Eu sinto muita falta dela.
   O lado bom de ficar aqui é que eu posso escolher o quarto que eu quiser sem pagar por eles, o lado ruim é que metade deles está destruída.
   O hotel tem três andares. Decidi ficar no último, assim, posso olhar pela janela e ver a vista. Não é uma vista agradável, eu sei. Porém, quando estou no alto, me sinto mais seguro. É mentira que eu estarei mais seguro, eu sei disso. Eu sei que isso é apenas um abrigo traiçoeiro nesta grande maravilha arruinada chamada de mundo. 
   Quando eu era criança, gostava de visitar a minha tia. Não por causa dela, eu estava cagando para ela para ser sincero. Ela não gostava da mulher do irmão dela e muito menos de mim. O motivo de eu gostar das visitas era porque eu gostava do apartamento dela. Ela morava no penúltimo andar e a primeira coisa que eu fazia quando ela abria a porta do apartamento dela era dar um abraço forçado e sem vontade nela e correr em direção à janela. Eu ficava lá o quanto eu pudesse, vendo as engrenagans engrenagens da sociedade funcionar como deveriam lá embaixo. Vários ternos, vários saltos altos e vários trapos pedindo esmola, deitados em becos escuros. Eu sentia pena dos trapos, aquilo estava errado, aquela máquina estava errada, por mais que parecesse funcionar corretamente.
   Decidi ficar no quarto à esquerda, no final do corredor. Eu pensei em ficar no da direita, por simplesmente estar mais bem arrumado do que o outro, pelo menos o mais próximo de arrumado que um quarto consegue ficar quando o mundo em si é uma enorme bagunça. Porém, quando entrei lá eu mudei de ideia. Eu vi um casal. Não sei se era velho ou jovem, estavam tão pútridos que não dava para diferenciar. Mas uma coisa dava para saber, eles morreram juntos, como nos filmes. Estavam abraçados. Os dois com um buraco de bala no crânio. Haviam eles desistido e decidido acabar com tudo juntos? A única coisa que eu sei era que a arma ainda jazia no chão, com balas. Eu precisava urgentemente de uma arma, da última vez que necessitei de uma eu quase morri.
   Estou muito fraco, com certeza é a fome. Não dá mais para adiar, preciso procurar comida agora.
  
6 – Segredos Esquecidos

   Eu quase entrei em desespero. Todos os supermercados e as lojas de convaniência conveniência foram completamente saqueados. Eu sei que eu já deveria estar preparado para isso, mas você não consegue raciocinar direito com tanta fome e logo começa a ficar irritado.
   Correndo pela cidade, procurei horas por qualquer coisa comestível. Por uma barra de doce, uma lata de milho... Eu estava quase desistindo quando encontrei algo muito melhor. Talvez um anjo da guarda ou qualquer coisa parecida decidira me ajudar.
   Logo após desistir de procurar em vários tipos de estabelecimento, passei a vasculhar casas. Na terceira, havia um compartimento escondido em um quarto no segundo andar. Era um alçapão camuflado, apenas visível por não estar totalmente fechado. Ele estava quase, mas não completamente vazio. Ainda sobravam algumas latas de comida e pacotes selados. Aquela casa deveria pertencer a algum pai de família neurótico que pensava que o mundo poderia acabar a qualquer momento. Pessoas como essas costumavam ser julgadas e viravam motivos de chacota. Que ironia.
   Guardei tudo o que podia na mochila e voltei para o hotel, não quis ficar por lá. A cidade podia estar vazia, mas não queria me arriscar, me esconderia até decidir o que fazer.

7 – Calor
  
   Eu sinto muita falta do sol. Já faz um bom tempo desde que não é possível avistá-lo completamente. Tudo o que você vê é seu formato brilhante atrás de um cobertor de nuvens cinza e tristes. O lado bom é que agora você pode olhar para ele por minutos seguidos e seus olhos não vão doer muito. Não sei se isso é exatamente uma coisa boa.
   O mais estranho disso tudo é que mesmo com o sol enfraquecido, o clima é estranhamente abafado. Isso deve ser resultado de algum distúrbio natural causado pelo homem. Na época em que existiam meios de comunicação em massa era possível discutir sobre estes problemas ambientais de uma maneira mais crítica. Ou até mesmo comunicação em geral, quando você podia conversar com o dono da banca sobre as notícias enquanto comprava seu jornal matinal para ler no ônibus ou no metrô a caminho do trabalho.
   Talvez o pior de toda essa situação seja a falta de ter alguém para culpar. Tudo bem, eu sei que a culpa é de um monte de gente, de um conjunto, mas eu queria poder culpar alguém especificamente. Queria apontar o dedo na cara dele e dizer “a culpa é sua.”.
   Queime, mate, suje e queime de novo. No final ninguém parece celebrar a meta que foi atingida, afinal ela é amarga, seu gosto não é bom e ela machuca e humilha. Nosso orgulho que causou a ruína dessa maravilha que me encontro.
  
   Comparando com meus registros anteriores, consegui notar uma melhora na minha escrita e estou feliz por isso. Isso se deve também ao fato de que voltei a ler há pouco tempo. A sanidade é doce, doce... Por isso eu quero que ela fique.
   Percebi que minha escrita não foi a única habilidade afetada por não ser praticada por meses seguidos (ou até anos quem sabe, não tenho a mesma noção de tempo de antigamente e quase todos os relógios que encontro estão parados). Notei também que minha leitura está muito ruim e então estou lendo em voz alta para praticar. Eu falo tão pouco diariamente que até mesmo minha voz soa estranha para mim.
   O livro que eu achei no fundo da minha mochila é de um escritor americano que era muito famoso na época dele e conta a história de um menino caipira. É engraçado e divertido. Nem sabia que eu conseguiria sorrir nesta única maravilha arruinada que chamamos de mundo.

9 – História

   Faz uma semana que eu estou alojado neste hotel (não sei se “alojado” ainda é um termo existente) e faço viagens frequentes à biblioteca. Redescobri o prazer da leitura. Estes personagens fictícios são meus maiores companheiros agora.
   Ler parece fazer o tempo passar mais rápido, até me faz esquecer a atual situação da humanidade. Mesmo nas piores situações você deve se manter são e seguir em frente, não interessa se você foi demitido do seu emprego ou se sua espécie está enfrentando uma eventual aniquilação.
    Agora pouco estava lendo “Por quem os sinos dobram” de Ernest Hemingwey Hemingway, fala sobre um moço que quer explodir uma ponte em meio à guerra civil espanhola ou algo assim. Estou envergonhado em admitir que eu não consigo me lembrar de vários eventos históricos, (nesse caso a guerra civil espanhola) mas creio que isso não importa mais. Estamos quase todos mortos, qual o sentido de historiar eventos? Os atuais sobreviventes são provavelmente uma das últimas linhagens de seres humanos e os filhos destes provavelmente não vão durar muito. A única saída seria ensinar outros animais a lerem, como os lobos. Tenho ouvido muitos lobos ultimamente. 
   Mas acho que essa é uma ideia idiota... É claro que é uma ideia idiota, ensinar animais a ler não vai adiantar nada, a única maravilha restante está se deteriorando a cada dia. Logo tudo vai acabar e o ser humano não vai ser a única raça a sumir para sempre. Mas com certeza foi o principal causador dessa coisa toda.
   Humanos idiotas...  
   Ah sim, hoje eu tive uma surpresa. Eu abri o chuveiro do banheiro, só por abrir mesmo e por incrível que pareça caiu água. Quase todos os lugares que eu visitei desde que tudo foi pra merda não possuíam água.

   Esta foi a primeira vez em meses que eu tomei um banho de chuveiro. Não sei exatamente de onde vinha aquela água, mas parecia limpa, então me arrisquei. Mas antes, fiz uma busca rápida no supermercado mais perto, que ainda havia produtos espalhados que eu ignorei por julgar não serem importantes e consegui xampu e sabonete. Achei até um barbeador elétrico, para cortar meu cabelo e minha barba, que estavam quase cobrindo minha cara. Tomei um banho muito longo, usei quase um sabonete inteiro. O chão estava imundo quando terminei, mas eu me sentia feliz... E limpo. Depois, vesti uma jaqueta e outras roupas novas que eu encontrei. A minha antiga estava tão suja, encardida e cheia de bichinhos que te fazem coçar. Devem ser pulgas, então decidi jogar tudo fora.


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