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28 de mar. de 2014

As Notas do Sobrevivente - I

As notas do sobrevivente - Prólogo

   É difícil caminhar com toda essa roupa. O peso da minha mochila e dos objetos que eu carrego também dificulta minha caminhada ainda mais, mas desde que tudo acabou, as pessoas começaram a carregar tudo o que podiam, com o constante medo de serem roubadas.
   Uma vida atrás eu era um escritor frustrado. Eu gostava de escrever, mas escrevia mal. Disseram-me que uma carreira seria um sonho impossível. Agora já não resta mais nada. Eu ainda prefiro a frustração a nada.
    É a primeira vez que eu escrevo desde que tudo foi pra merda. É estranho. Antigamente, quando o mundo era mais verde e menos cinza, eu conseguia colocar as palavras no papel de uma forma mais fluída e agradável. Eu era mais são naquela época.
   Antes havia sete maravilhas no mundo. Consigo vê-las na minha mente neste exato momento. Agora, todas elas estão em pedaços, ou esparramadas por aí, ou enterradas a alguns palmos neste solo sem vida. Hoje, o mundo inteiro é uma única maravilha arruinada. 
   Essa é a primeira vez que eu escrevo desde que tudo foi pra merda. Pretendo escrever mais daqui pra frente.
   Isso vai ser um prólogo. Um prólogo... Isso é um tipo de introdução pra uma história... Alguns livros que eu costumava ler possuíam prólogos.

1 – Fome

   Eu estou com muita fome. Preciso encontrar uma cidade e rápido. Lá precisa ter comida.
   Hoje, tive o pior pesadelo da minha vida. Foi tão real que eu acordei em lágrimas e estou me sentindo mal desde então. Nele, minha filha estava viva. Acho que a fome que estou sentindo agora deve ter afetado o meu sono, porque nele eu estava comendo o braço dela, da minha garotinha, do meu anjo. Ela gritava e chorava, implorando para eu parar, mas eu apenas dizia suavemente para ela que ela só precisava aguentar um pouco, que eu logo estaria sassiado saciado e poderíamos dar uma volta no parque mais tarde. Eu a encarava com olhos bondosos e a boca cheia de sangue e pequenos pedaços de carne. Pedaços da pessoa mais preciosa que eu tive na vida.
   Eu reli o prólogo que escrevi ontem e cheguei à conclusão de que não estou bem. Preciso acorrentar o que resta da minha sanidade para que ela não possa fugir.
   Eu já deveria ter me matado, não sei por que me importo em continuar andando...
   Deus, se você estiver lendo isso, saiba que eu quero te matar com as minhas próprias mãos. Você abandonou a todos nós e eu odeio você. 

2 – Sonhos

   Não tive pesadelos esta noite. Sonhei com pássaros. Havia muitos pássaros, de todos os tipos. Só disso eu me lembro. Às vezes eu gostaria de dormir pra sempre. Apenas pular de um sonho para o outro, de uma maneira aleatória. Mas sem pesadelos. Não quero sonhar com nada parecido com o que sonhei na noite passada.
   Tenho uma boa notícia. Encontrei uma lata de atum no fundo da minha mochila. Pude até sentir uma lágrima escorrendo de fecilidade felicidade, quente e de vagarosa. Não sei como pude me esquecer daquela lata.
   É claro que aquilo não foi o suficiente para me satisfazer completamente, mas pelo menos não vou morrer de fome.
   Tenho outra boa notícia. Avistei uma cidade. Não parece muito grande, mas acho que consigo alcançá-la com umas cinco horas de caminhada. Tem que haver comida lá.
   Enquanto caminhava, não consegui parar de cantar uma canção. Uma canção que eu gostava de cantar para minha filha quando ela tinha uns dois anos. Era uma música que falava sobre um pássaro negro voando. Faz-me lembrar das manhãs de domingo, com orvalho e café. Como eu sinto falta do gosto de café. Talvez eu esteja cantando-a por que sonhei com pássaros.
   Deus, eu quero que me perdoe pelo que eu disse ontem. Apesar de tudo, eu ainda tenho fé em você, como sempre tive. Eu disse aquilo porque estava me sentindo muito mal... Amém.

3 – Sede

   Hoje foi um dia triste. Quer dizer, todos os meus dias são assim porque eles seguem uma mesma rotina desagradável. É bem estranho, sua mente parece se desfazer e você acaba simplesmente não ligando mais. Você anda, você segue em frente mesmo sem saber exatamente o motivo. Hoje, porém, foi um dia mais triste do que costuma ser.
   Eu vi um cachorro. Ele estava deitado na beira da estrada e estava morrendo. Quando me aproximei, vi que ele ainda estava com olhos abertos e respirava lentamente.
   Eu me sentei ao lado dele e o acariciei até ele fechar os olhos de vez. Enquanto eu passava os dedos em seus pelos sujos e manchados, ele fazia aquele som parecido com choro que cães costumam fazer, parecia até que estava agradecendo.
   Derramei um pouco de água na palma da minha mão e ofereci a ele. Ele bebeu tudo em um instante. Quando finalmente parou de respirar, eu chorei. Não exatamente pela morte dele, mas sim pelo o que ela representava. Todas as coisas que eu entro em contato parecem morrer. Tudo parece querer fugir de mim. Tudo passa a fazer parte do mesmo solo morto, pertencer àquela única maravilha arruinada chamada de mundo.
   Cada dia que passa tudo fica mais cinza, tudo fica mais seco.
   Eu ainda não cheguei à cidade. Ela estava mais distante do que eu pensei. Mas agora tenho certeza que ela está perto.
   Vou continuar a andar assim que o sol se erguer novamente. Aquele sol que perde seu brilho e seu calor a cada dia que passa.  

4 – Hotel

   Estou tão cansado, mas finalmente estou aqui. Porém, não posso dizer que eu estou satisfeito. Não tem ninguém nesse lugar.
   Eu disse que queria chegar logo para poder encontrar comida, mas eu menti. Quer dizer, não era bem uma mentira porque eu realmente preciso comer, mas o que eu queria mesmo encontrar aqui eram pessoas. Faz meses que eu não converso com alguém. A solidão vai te correndo e você só percebe bem depois, quando tudo que resta é um buraco dentro de você.

   Eu estou tão cansado que vou procurar comida depois de uma soneca. Eu sei que dormir com fome não é bom, mas no momento não me importo se eu morrer. Tem um hotel aqui perto, vou dar uma olhada. 


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